O Romanceiro Nordestino na poesia de Manoel Lira Vargas
Manoel Lira Vargas nasceu em 13 de Abril de 1916. Filho de Amaro Gomes de Lira e Teresa Maria de Jesus, natural de Bonito-PE. Seu pai tinha uma porção considerável de terra onde hoje se localiza a barragem do Prata. Por isso mesmo, seu pai era conhecido como Amaro da Prata, homem católico fervoroso, auxiliava na organização e celebração das missas daquela região. Sobre dona Teresa pouco se sabe a respeito, embora a história que permanece através da oralidade seja de que era um casal de católicos fervorosos.
O jovem Manoel Lira tinha quatro irmãos, Francisco Amaro de Lira, João Lira Sobrinho, Josefa Guimarães de Lira, e a freira Irmã Suzana. Diferente dos outros irmãos, Manoel Lira nunca foi paciente, sempre agitado, atribuía sua inquietação a um agouro que sua avó, Clarinda, havia proferido no passado. Na ocasião, a senhora já de idade acalentava um gato em seu colo, e o menino agitado percebendo a chance de fazer uma arte, chegara de mansinho até bem perto de sua avó; sem ser percebido, chega de imediato pedido benção e batendo os pés com o intuito de causar um susto tanto na senhora quanto no felino. Ao perceber a agitação, o gato sai em disparada arranhando os braços da velha Clarinda. O menino cai na risada e a sua avó profere o agouro: “tu há de ter calma tal qual as águas do mar!”. Sempre que ele notava que estava agitado demais, lembrava aos amigos e familiares da praga proferida naquele dia e voltava a rir de toda a cena.
O mesmo menino traquina, outrora, ouviu que na cidade naquele tempo haveria a apresentação de uma banda de música. Pediu ao pai pra ver a apresentação, mas não obteve autorização. Decidiu aprontar novamente. Esperou todo mundo dormir, e na calada da noite abriu a trave da janela e passou pra o lado de fora. Saiu mato a fora. Ao chegar perto da cidade, se escondeu em uma moita, justamente pra que ninguém o visse e depois contasse para seu pai. Assistiu ao espetáculo. Nesse meio tempo, seu pai havia acordado e verificado que o jovem Manoel Lira não estava. Passou a noite toda esperando por ele. Ao chegar a casa, o jovem verificou que a janela não estava na mesma posição que havia deixado, e formiga sabe a roça que rói. Para que não fosse exposto de imediato, pegou uma penca de bananas e jogou pra dentro de casa pela janela, foi quando ouviu o estralo do chicote e seu velho pai gritando: “cabra safado, você acha que eu estou feito besta ficar até essa hora lhe esperando e você pelo mundo!?”. Nesse instante, bateu retirada pelo meio do mundo e só voltou 15 dias depois. Ficou nesse tempo na casa de seu tio.
Já rapaz, o jovem poeta Manoel Lira, mesmo sem leitura se interessa por arte e literatura. Pagava o que tinha pra que alguém lesse pra ele. Descobre que um amigo passava o tempo respondendo e criando cartas enigmáticas. Foi quando aprendeu a ler. Tinha tanto gosto pela leitura que passava dias inteiros criando e respondendo cartas enigmáticas. Nessa época também aprende o ofício do teatro de mamulengos, o popular teatro de bonecos do interior Pernambucano. Desenvolve cerca de 25 vozes diferentes e consegue produzir uma apresentação em torno de 2 horas. As peças continham estórias típicas do romanceiro nordestino.
Manoel Lira conhece uma jovem na época e é acusado de ter “perdido” a moça. É obrigado a se casar. Mas antes prepara outra anedota. Diante do tabelião tem que levar o seu batistério para a confirmação do casamento. Pega sorrateiramente o batistério de seu irmão falecido prematuramente, e se passa por ele. Depois de realizada a cerimônia, diz que vai embora, o pai da moça diz que ele não podia fazer aquilo, pois agora estava casado com sua filha, ele então debocha: “ela casou foi com um morto, eu sou solteiro.”, pega suas coisas e desaparece.
O poeta Vargas vira um andarilho, é o período mais criativo de sua vida. É quando vai ser auxiliar de um esotérico charlatão, o popular macumbeiro. Aprende uma série de artimanhas, dentre elas a argumentação e o improviso, elementos importantes para a construção de sua poesia. Conhece todo o nordeste a pé. Passa muitos anos até voltar pra sua cidade natal e se fixar.
Depois do falecimento de sua mãe, muito prematuramente, apenas 42 anos, gasta todos os bens da família com festa, bebidas e mulheres. Aprende a tocar oito baixos e cantar. Era chamado pelos homens importantes para animar as festas. No período junino aprende a organizar e realizar quadrilhas. Isso fez com que sua vida fosse voltada para um estilo vadio e sem compromisso.
Durante o ano de 1941, Manoel Lira é convocado para se alistar ao exército. Passa uma temporada em treinamento e é obrigado a pegar uma condução, junto com outros pracinhas da região, em direção ao Recife para de lá ir para a Europa. Diante do desespero e das notícias sobre o conflito mais mortal do século XX encontra uma solução: quando a comitiva estava se deslocando, ele juntamente com outros pracinhas e alguns oficiais pulam do carro em movimento e correm pra dentro dos matos. Os veículos param na tentativa de capturar os foragidos, mas não logram êxito. Fica mais de um mês escondido na mata, se alimentando e escondido em casas de conhecidos nos sítios. A respeito disso encontramos um dos seus poemas sobre a vida de soldado de meados da década de 70:
Estado de Alerta
Um soldado:
Procura honrar a sua farda
De Frente ou Reta-Guarda
Por Macega ou oiteiro
Risse com o desespero
Avança luta muito forte.
Sem temer a própria morte,
Homem que for assombrado
Não se meta a ser soldado,
Vê falar em farda volte.
(Manoel Lira, 1972)
Pelo fato de ser alguém com forte presença de espírito e muito hábil com as palavras adquire amizade com muitos políticos. Isso fez com que não fosse punido depois que resolve aparecer. Muda o sobrenome para dificultar qualquer represália. Muda de Manoel Lira Sobrinho para Manoel Lira Vargas. Uma clara referência de seu apoio ao ditador do Estado Novo brasileiro, Getúlio Vargas. Começa produzindo de forma escrita suas primeiras poesias. Concilia sua produção poética com discursos em solenidades para prefeitos, deputados e até governador. Tinha um forte apelo ao caráter nacionalista e repudiava o comunismo. Tentava valorizar os heróis de sua terra. Encontramos vários tributos a Lampião, por exemplo. Destacamos dois poemas:
Lampião
Procure saber primeiro
Como foi minha infância,
Que perdi toda elegância
De um grande brasileiro.
Que me tornei cangaceiro,
Perdi minha mocidade,
Fora toda sociedade
Feito um sanguinolento.
Só eu sei meu sofrimento
Por causa de um covarde!
Lampião II
Sabemos quem foi Lampião,
Era um agricultor honrado.
Depois foi mesmo obrigado,
Como “Dimas o bom ladrão”,
Deixar de ser um cidadão
Para ser um cangaceiro.
Temos que saber primeiro
Para depois poder falar,
Ninguém pode lhe maltratar
Sendo Herói Verdadeiro!
É bem presente também em seus poemas a marca religiosa. Não por ser um homem religioso, mas por fazer parte do Romanceiro Nordestino, coisa que muito valorizava. Nesse poema vemos seu respeito por figuras como Padre Cícero, Frei Damião e Dom Helder Câmara:
Deus me Proteja
Um Padre certo, quem conhece,
Valoriza seu trabalho.
Faz tudo, não tem atrapalho,
Vemos quanto enaltece.
Toda gente reconhece
Bom padre Cícero Romão,
Dom Helder e Frei Damião,
Todos nós estamos vendo,
Estes padres vêm mantendo
Esta brilhante tradição.
Outras vezes essa marca religiosa era mais filosófica e contemplativa. Não sabemos se é uma composição própria, porém encontramos em seus escritos um mote chamado Quanto é grande o Autor da Natureza:
Quanto é Grande o Autor da Natureza
Nós vemos o Sol que vem brilhando
Por trás da mais alta serrania
Mostrando a todos que já vem o dia.
Os Pássaros começam logo cantando,
Nós vemos o mundo clareando,
O Sol mostra sua fortaleza.
A gente admirando a grandeza,
Nós sentimos do sol tanto quentura.
A Lua com aquela frieza pura,
Quanto é grande o autor da Natureza.
Se olhando a grande Cordilheira,
Os Condores ali nela voando,
La no Peru muita gente olhando
Os animais lindos na carreira.
As Árvores com tanta madeira,
Onde nasce o Amazonas com certeza,
Nasce, faz a sua correnteza
Tantas aves tudo bem diferente,
Águas salgadas e doces, paradas e correntes,
Quanto é grande o autor da natureza.
Gasta a terra na sua rotação
O Espaço de vinte e quatro horas
Em trezentos e sessenta e cinco auroras,
Ela percorre toda revolução.
Foi dito por nosso pai Adão
Quando olhou que viu esta grandeza,
Disse a Eva, à rainha da beleza:
Gira a terra outros planetas no espaço,
Deus sustenta tudo com o seu braço,
Quanto é grande o autor da natureza.
Pela física atração da atmosfera,
Faz baixar o grau da temperatura.
Sobe a água para certa altura
Forma a nuvem no espaço se apodera.
Em estado de gelo a nuvem espera
Que o vento sopre em sua defesa.
Dissolve as águas em correnteza,
Forma a nuvem no espaço se apodera.
Cai na terra corre para o oceano,
Por estas obras nos mostra o Soberano,
Quanto é grande o autor da natureza.
Vê-se a grande catarata,
Ou a cascata como a de Paulo Afonso.
Todas as águas caindo num espaço,
Relembrando as elas da Vulgata.
Muito mais de seis anos chega à data
Que o Amazonas não para a correnteza.
O oceano recebe com franqueza
Todas as águas sem minguar,
Por estas obras a gente pode vê
Como é grande o autor da natureza.
Os peixes nas águas são criados;
Quase ninguém sabe como é.
Tartarugas, cágados e jacarés,
São estes anfíbios denominados.
Sendo os peixes mais apreciados,
Os que existem nas grandes profundezas.
Saindo da água, eles morrem, com certeza.
Contém ar igualmente ao Zeppelin,
Os peixes nos mostram assim
Quanto é grande o autor da natureza.
As águas inquietas do oceano
Murmuram lutando todo dia.
A maré hora cheia, hora vazia,
Qualquer dia que tenha nosso ano,
Sopra o vento sem nunca causar dano,
Gira a terra com grande sutileza,
Os dois polos são donos desta empresa,
Nosso globo é um motor funcionando,
Como poeta eu vivo contemplando,
Quanto é grande o autor da natureza.
O profeta Moisés, este lutou
Contra o rei faraó lá do Egito.
Com o pode de um Deus Infinito,
Fez da pedra pão e transformou.
Os israelitas da fome ele salvou,
Deu de comer a todos com certeza,
A Escritura nos mostra sua fortaleza,
Que em terra enxuta passou no mar vermelho.
A Escrita nos mostra como espelho,
Quanto é grande o autor da natureza.
Quando retumba um trovão
Que o relâmpago espargiu aquela luz,
A gente se lembra de Jesus
E imagina no seu próprio coração.
Se Deus quisesse em nada punha a mão,
E acabava com tudo de surpresa.
Toda gente procura uma defesa
Quando um trovão na hora estremece,
O próprio bruto parece que conhece,
Quanto é grande o autor da natureza.
Por obra e graça do Espírito Santo
Operou que a Virgem Concebesse
Jesus Cristo, seu filho, dela nascesse.
Ficando ela virgem o mesmo tanto,
Criou Jesus envolvido no seu manto,
Como que fosse um filho da pobreza.
No terceiro dia ressuscitou,
Jesus Cristo, seu filho, nos mostrou,
Quanto é grande o autor da natureza.
É possível ainda observar que o poeta Manoel Lira perpassa essa religiosidade para o campo mitológico, ambiente do qual também era muito admirador:
Poema Mitológico
Dormindo ouvi dizer que quem amava e bebia
Da água da simpatia na fonte do bem querer.
Despertei-me e pus a ler os versos de Anacreonte,
No reino de Faetonte, no pé do monte sombrio,
Junto às nascenças dos rios fui beber água na fonte.
No pé de um grande rochedo achei a bela piscina,
Puramente cristalina deslizando de um penedo.
À sombra do arvoredo estava uma linda dama,
Adormecida na grama, tinha as feições de uma fada.
Era uma ninfa encantada e debaixo da verde rama;
A água estava repleta de frutas, botões e flores
Com variações de cores que admirava um poeta.
De uma beleza completa eu vi a relva cobrisse,
Eu fiquei como quem visse o eterno paraíso.
A ninfa ofertou-me um riso, uma florzinha me disse:
Aquela ninfa é a Sorte, uma filha do destino,
Compositora do Hino do Amor-Seguro e Forte.
Se queres o passaporte, falai com a linda dama.
Ela se ergue da cama, com muito zelo te acata,
Quando a Sorte é ingrata, muito padece quem ama.
A poesia de Vargas será direcionados também aos políticos e homens importantes da época. Ele lia os versos enaltecendo as políticas públicas de alguns prefeitos, deputados e governadores. Ganhava simpatia e algumas benesses, como por exemplo, o fato de ter ido conhecer Brasília com toda a hospedagem paga e de avião por um deputado na época. Uma dessas aproximações foi com Cid Sampaio, governador de Pernambuco. Na época o governador tinha um apreço tão grande ao poeta que permitia que ele entrasse em seu gabinete sem nem marcar horário. Essa aproximação fez com que conseguisse um cargo no antigo DPV (Departamento de Produção Vegetal). Através desse departamento foi um dos pioneiros a popularizar a plantação da acerola em boa parte do agreste pernambucano em meados da década de 60.
O poeta Manoel Lira Vargas viveu até os 94 anos de forma lúcida e declamando poema de improviso. Faleceu em Lajedo no dia 02 de novembro de 2011.
Autor: Elifas Paixão de Lira